terça-feira, 19 de janeiro de 2016

"PÉ DE BOTAS".

Coturno 

O terminal rodoviário do Plano Piloto estava extremamente cheio naquela noite. Era final de sábado e juntou o movimento normal, dos trabalhadores voltando para a casa depois do trabalho, e a "Micarecandanga" do Eixão - Brasília/DF. O ano era 1993. O anúncio da TV dizia que várias celebridades estariam na micareta, como, Daniela Mercury, Netinho (Ô Milla, mil e uma noites de amor com você) e Chiclete com Banana. Quando vem qualquer um desses na cidade a lotação do evento está garantida, imagina quando vêm os três no mesmo evento e com evento grátis.

Os ônibus estavam saindo completamente lotados. Eu já estava na fila há mais de duas horas e tinha a certeza de que esperaria, pelo menos, mais uma hora. No ponto que eu estava tinha umas quinhentas pessoas na minha frente. Tinha certeza que não ia conseguir ir sentado e a viagem em pé no Distrito Federal é insuportável. As cidades satélites são longe do Plano Piloto. Eu ia para Planaltina de Goiás. É longe, viu?

Apesar da multidão atípica no terminal, as coisas estavam indo bem. Os ônibus encostavam e, como era um dia especial, micareta, a polícia estava dando suporte para embarcar os passageiros. O ônibus não pode sair com as portas abertas. Os guardas da PM cuidavam exatamente desse setor.
 - "Nenhum ônibus sairá com a porta aberta!" - Os policiais diziam isso o tempo todo. Empurrava as pessoas para dentro com força e pedia para o motorista fechar a porta quando ele contasse até três. Às vezes ficava uma mochila, uma perna ou um braço de fora, mas o policial gritava para as pessoas dar um passinho para frente e pedia para o motorista abrir a porta para empurrar o braço da pessoa para dentro. Após acertar as arestas das janelas utilizando o cassetete, novamente pedia para o motorista fechar a porta e iniciar a viagem.

Mas parece que quando não é para dar certo, nem com a presença maciça das autoridades as coisas se desenrolam. Aquele ônibus estava tão lotado que não cabia mais nada. O policial já tinha gritado, empurrado, já havia retirado pessoas da região da porta, mas quando pedia para o motorista fechar a porta, esta prendia alguém e começava aquela gritaria de desespero. O policial empurrava as pessoas e fazia sinal ao motorista, ele fechava e prendia mais um. Desta vez foi uma mulher aparentemente grávida. Essa senhora deu um grito tão alto que parecia que o bebê ia nascer. O policial empurrava com o cassetete, mas não tinha jeito. A mulher gritava tanto que o motorista pediu para ela embarcar na próxima viagem. Ela insistiu que queria ir naquela viagem, pois os seus dois filhos já haviam embarcado. O policial solicitou que ela aguardasse na plataforma e tentou localizar os filhos no ônibus. Após o burburinho e o empurra-empurra, localizaram os dois filhos pequenos dela. Eles tentavam se mover para descer, mas estava tão cheio que mal conseguiam respirar em seus lugares. A mulher estava tão nervosa que as pessoas se tocaram e começaram a descer do ônibus para tentar acalmá-la. E, após o encontro com seus filhos, ela voltou para a fila e tentar embarcar no próximo ônibus, pois os lugares reservados já estavam todos ocupados. As pessoas voltaram para o ônibus a fim de conseguir embarcar. 

Quando parecia que tudo estava resolvido, o policial , utilizando novamente o cassetete, empurrou um senhor que estava no primeiro degrau e pediu para o motorista fechar a porta no três. Porém, dessa vez prendeu o braço do próprio policial. O motorista abriu a porta e o policial, irritado, desceu para a plataforma visivelmente irritado. E de repente uma voz lá do meio do ônibus:

- Ô pé de botas, libera essa porta que a gente não pode esperar a noite inteira, não! – A reação do policial ao ouvir isso foi tão violenta que ele invadiu o ônibus e foi atropelando todo mundo, sem medir consequências, até chegar ao meliante. Agarrou-o pelo pescoço e saiu puxando-o, derrubando crianças, mulheres, quem estivesse na frente dele ia tombando. Teve um momento que ele tentou jogar o homem pela janela, mas não conseguiu. Agarrou-o pelo pescoço novamente e foi puxando, seguindo em direção à porta. A confusão ficou generalizada e todos que estavam na plataforma foram ficando irados com a cena. Ninguém esperava essa atitude tão violenta daquele policial. A multidão que estava nas plataformas por ordem de fila, se aglomerou e começou a gritar em coro:

- Pé de botas! Pé de botas! Pé de botas!

O policial não desistiu enquanto não imobilizou aquele homem no chão, algemando-o. Chutes, socos e cacetadas foram disferidas contra ele. As pessoas não paravam de gritar em nenhum momento:

- Pé de botas! Pé de botas! Pé de botas!

À essas alturas outros policias das imediações correram para o local. Virou uma verdadeira praça de guerra. Já não sabia mais dizer se a polícia batia ou apanhava. Várias pessoas ficaram machucadas. Ninguém da polícia jogou bomba de gás, mas a guerra tomou conta do local. A mulher grávida pegou os seus filhos e, juntos, ficaram agachados debaixo da lixeira. Presenciei várias pessoas passarem por cima deles até, esgueirando-se, conseguiu sair do meio da massa com seus filhos a salvo dos pisões. Várias pessoas foram presas. Eu fiquei com tanta raiva que não conseguia manter a calma. Quase tomei a decisão de dar umas bolachas no policial, declinei, é claro. Preferi distanciar-me da zona do conflito, tive medo de ser pisoteado pela multidão enfurecida. E após uma hora e meia, esperando a poeira assentar, resolvi embarcar numa van clandestina que passou a servir do lado de fora do terminal rodoviário do Plano Piloto. Foi realmente um dia de cão.
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Onofre W. Johnson

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