sexta-feira, 28 de novembro de 2014

SOBRE SANTOS E VELAS

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Sobre santos e velas...



Eram 07h00 da manhã, e Samuel, o jovem evangélico, acordou a pouco. Na noite anterior ele havia recebido uma ligação da empresa de limpeza em que trabalha, solicitando os seus serviços para esta manhã. Seria numa residência lá no Real Parque, Zona Sul da capital paulista.

– "Eis-me aqui!" - Foi a sua resposta à prestadora de serviços terceirizados. Não podia faltar em hipótese alguma. Era funcionário novo e ficar sem trabalho justamente agora que se aproximava o final do ano não lhe seria nada útil. Após conferir se o seu bilhete único estava carregado, atravessou a cidade de São Paulo inteira, rumo ao Real Parque. 

Após duas longas horas na condução, pois morava na Zona Leste, se apresentou à uma estância maravilhosa, na parte mais nobre do Real Parque, na Zona Sul. Quem o recebeu, no portão chique da residência, foi a senhora Lavínia, proprietária da mansão. E ainda estavam ao portão e ela já foi lhe entregando o planejamento das suas tarefas e o que deveria ser limpo até o final do dia. Samuel assentiu tranquilamente, pois era um profissional de qualidade. 

Havia começado a trabalhar às 09h30 e, como o seu expediente se encerraria às 18h00, nem quis almoçar, pois havia entrado em "consagração". Há muitos anos que Samuel, sempre aos domingos, se consagra ao Senhor, isto é, ele não come absolutamente nada o dia inteiro, e entregaria o jejum no altar da igreja onde ele congrega.

Samuel estava com o seu serviço bem adiantado até que, às 15h00, foi interrompido pela voz macia da senhora Lavínia lhe chamando ao patamar abaixo do andar de onde ele fazia a faxina:

– "Oi, fofo! Você poderia me ajudar a pegar umas coisas do armário da sala de visitas e colocá-las no mezanino?" – Indagou a senhora Lavínia. Ela aprendeu a dar ordens sempre em forma de pergunta. (Esses programas vespertinos ensinam muita coisa para as madames, mas a senhora Lavínia, com certeza, havia aprendido essa técnica através da geração de burguesa a qual pertencia). Samuel não era lá, assim, um rapaz muito forte, ainda por cima estava se sentindo fraco devido ao jejum da consagração que fazia sempre aos domingos, mas, como pertencia ao "clube dos fofos”, sucumbiu imediatamente ao pedido da senhora. 

Era, realmente, uma grande mansão, decorada por vários quadros de luxo, bustos e estátuas antigas de santos católicos. Samuel, particularmente, não gosta desse tipo de decoração, pois, leu na Bíblia, que o Senhor não se agrada das imagens de escultura, mas, enfim, estava ali apenas para realizar o seu trabalho e sabia o quanto era difícil tirar o pó dessas estátuas. A senhora Lavínia mostrou-lhe uma enorme cristaleira na sala. Era uma pomposa peça adquirida em antiquário por preço irrevelável:

– "Deve ser caro esse móvel!" – comentou Samuel - mas não quis ficar pensando sobre a ostentação do local, não. Apenas queria executar o que lhe fora contratado e cair fora. (Desvios de funções nesse ramo de atividade é muito comum e nem sempre recompensam o funcionário com algum adicional remunerado).

Procurou agir rapidamente, pois, apesar estar com o serviço adiantado, ainda havia muitas coisas à limpar na mansão. A noite logo chegaria e Samuel queria ir à sua congregação para entregar o jejum no altar do Senhor. Ele sempre dizia para todos que o domingo é o dia do Senhor”. E acrescentou:

–  Eu vou à igreja, hoje, nem que seja me arrastando!

– "Poderia levar primeiramente esse pacote, meu jovem?" – Disse a senhora Lavínia. Samuel olhou o pacote e, de cara, constatou que era pesado. Mas, sendo ele o único homem ali presente, não ficaria bem, para ele, pedir ajuda à uma mulher, então, atracou-se violentamente ao pacote e começou a andar, como podia, de pé em pé, com a coluna encurvada. Às vezes soltava lentamente o pacote para descansar os braços e, como também lhe doíam as costas, prendia a respiração para suprimir a dor causada pelo peso excessivo. E assim foi subindo a escadaria, degrau por degrau, quase chorando de dor. E, enfim, transportou o objeto até onde a senhora Lavínia o havia indicado.

Da sala da cristaleira até o mezanino, distavam uns setenta e cinco metros, mas os dezoito degraus da escada é que lhe causaram maior esforço. Quando voltou, a senhora Lavínia já apontava-lhe o outro avantajado pacote embrulhado com uma espécie de tule e plástico bolha por baixo, e disse-lhe ela:

– “Muito cuidado com este volume. É uma estátua muito rara, feita de espuma vulcânica que, apesar de ser dura, é bastante frágil”.

Samuel respirou fundo novamente e grudou na parte inferior da estátua, suspendendo-a com muita dificuldade. Ao dar o primeiro passo, deixou ela tombar levemente, equilibrando-a em seus ombros, mas como, realmente, era muito pesada, declinou. A senhora Lavínia suspirou rudemente e lhe disse que a estátua já deveria estar posicionada no mezanino e não podia esperar o dia todo, pois os seus convidados chegariam a qualquer momento e ainda precisava adornar a estátua. Tratava-se de uma estátua de Santa Maria, a mãe de Deus, disse a senhora beata.

Samuel tentou mover a estátua novamente, mas agora não houve jeito. Notou que havia perdido completamente as suas forças. Quebrou todo o seu orgulho e decidiu pedir pela ajuda da senhora. Ela amarrou as pontas da saia e arregaçou os punhos da sua blusa de linho. Os dois atracaram-se à estátua e, juntos, seguiram transportando-a com muita dificuldade pelo longo corredor até a escada que dá acesso ao mezanino. Samuel, que já estava sem fôlego e suava bastante, contou mesmo com a ajuda da senhora Lavínia, mas, para aliviá-la, deixou a parte mais pesada pendida para o seu próprio lado. A senhora Lavínia ia a frente, direcionando a cabeça da estátua, mas, por causa do peso excessivo, andava lentamente, pé a pé. Tirou os sapatos, pois percebeu que havia quebrado o salto quando esforçou-se para subir o primeiro degrau. Isso a deixou tão irritada com Samuel que o chamou de imprestável. Mas continuou a subir os degraus.

Após a aventura cansativa e sem fôlego na subida da escada, ainda precisavam suspender a estátua no altar que havia sido posto no canto iluminado do mezanino. Samuel contou até três, prendeu a respiração e impulsionou a estátua para cima do altar, entretanto, não suportou o peso e soltou a mão. Neste momento, a estátua começou a cair lentamente para cima da senhora Lavínia que também não suportou e soltou o seu lado para tentar escapar de ser esmagada. Antes de estabacar, a estátua tirou uma fina milimétrica da senhora Lavínia. Bateu violentamente no chão acarpetado do mezanino, partindo-se em três. Tomada de ira, a senhora Lavínia fitou Samuel e quase o espancou de tanta raiva. Aquele olhar hostil da senhora Lavínia acendeu a ira do rapaz que, como um gato, suspendeu a estátua de espuma de lava de vulcão com uma força sobrenatural. Colocou-a sobre o patamar de forma segura (nessas horas, a força estimulada pela raiva vem em dobro).

Em completo silêncio, Samuel untou as extremidades quebradas da estátua com o epóxi que havia encontrado na última gaveta da cristaleira e refez as formas da estátua com péssimo acabamento improvisado. Ao ver a estátua montada, a senhora Lavínia recobrou os seus ânimos e, rapidamente, começou a adornar a estátua. Cobriu-a com as vestes nobres adquiridas numa loja chique de Buenos Aires. Usou cola quente para dar o acabamento nas pontas e, assim, escondeu as emendas do epóxi. Após respirar aliviada, disse ao jovem evangélico:

– Talvez ninguém perceba que a estátua está avariada, não é mesmo? 

Naquele primeiro pacote que Samuel levou sozinho, haviam castiçais, cachepôs e grandes velas virgens. A senhora Lavínia desembrulhou essas peças e percebeu que não haveria mais tempo para dispô-los no local. Voltou a pedir a ajuda de Samuel, chamando-o de "fofo".

Às 18h00, começaram a chegar os convidados. Samuel reparou que ao se aproximarem do altar do mezanino, as pessoas prostravam-se aos pés da estátua. Alguns choravam, outros comentavam sobre nunca terem visto olhos tão misericordiosos como aqueles. Outros acendiam as velas dispostas nos cachepôs e nos castiçais, transformando o mezanino num ambiente sombrio, triste. Logo chegou o padre e todos os convidados puseram-se de pé, inclusive a senhora Lavínia que havia ido recebê-los no portão da estância. O padre deu inicio a uma espécie de "culto de adoração à Virgem Maria", com cânticos e rezas, num idioma estrangeiro, talvez o latim. Em determinados momentos do culto todos diziam, em coro: 

– “Salve rainha, mãe de misericórdia...”. 

Samuel observava a cena de longe, mas teve um momento em que o seu olhar cruzou com o olhar da senhora Lavínia. Ela sorriu, demonstrando que estava aliviada, pois ninguém havia percebido que a estátua estava remendada com epóxi. Samuel sorriu de volta e dispersou o seu olhar tímido. 

Já havia recebido a paga por seus serviços, mas, Samuel, resolveu ficar na estância por mais alguns minutos, pois queria ver como é que os católicos congregam. Ficou decepcionado ao ver todas aquelas pessoas se prostrando aos pés da estátua e, não conseguiu suportar vê-las fazerem súplicas, dando demonstrações de afeto à imagem e confiança à imagem. Entretanto, permaneceu em silêncio e orava bem baixinho, ali, no mezanino da mansão, e pronunciava repetidas vezes a frase:


– "Senhor, tem misericórdia!!!"


Às 18h30, o jovem saiu da estância em direção ao ponto de ônibus, pois não queria se atrasar. Precisava chegar à sua igreja e entregar o jejum, como sempre fez em dias de consagração. Ele sempre dizia que iria à igreja nem que fosse se arrastando! 

Mal desceu do ônibus e percebeu que havia algo errado com a sua barriga. Ela borbulhava feito um Sonrisal com Coca Cola. Deu alguns passos e um forte estupor começou a dar sinais iminentes do transtorno que sofreria nos passos a seguir. É nessas horas que o crente mais morno se transforma no mais fervoroso de todos os cristãos. Toda ajuda que vem do alto ou de baixo é muito bem vinda. Apertava o passo, mas já sentia que não seria possível chegar em banheiro algum. Cada passo era dado com grande esforço e responsabilidade. Chegar ao primeiro banheiro seria a sua maior conquista. Aquele estupor de diarreia roía-lhe a barriga e seguia piorando a cada segundo. Já orava em línguas sem nem querer saber se Deus o havia batizado com o Espírito Santo. Ajoelhou-se no chão quente do asfalto e determinou que não conseguia mais caminhar. O jeito, então, era arrastar-se, pois estava a poucos metros da igreja. Chegou ao altar todo cagado. Os irmãos, ali presentes, encaminharam-no ao banheiro, enquanto faziam ventinhos nos narizes e diziam:

– "Senhor, tem misericórdia!!!"


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Onofre W. Johnson
Escrito em 28/11/2014

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