sexta-feira, 27 de novembro de 2015

"BANHEIRA AZUL".

PREPARATIVOS DO BANHO...
Dona Palinha iniciou as tarefas que antecedem o banho de seu filho, o Joãozinho. Puxou água do poço de vinte e cinco metros de profundidade na base do sarilho e corda, montados em cima do poço. Nesta época a família ainda não tinha a bomba elétrica para puxar água. Para descer o balde era fácil, só não podia soltá-lo, pois poderia bater no fundo com força e isso poderia quebrar as extremidades do balde com a corda amarrada ou a estrutura de madeira que cobria o poço. Para puxar o balde de volta é que precisava empreender força, principalmente para uma mulher franzina como dona Palinha. O balde era grande (18 l) e subia cheio d’água. Era impossível colocar só a metade, ou 1/3, o balde vinha cheio e pingando. Ao chegar à borda do poço, a mãe aparava-o e passava o seu conteúdo para as panelas que já estavam posicionadas ali, ao lado. Depois ainda precisava esquentar toda aquela água para ir "temperando" com água fria. Tomar banho quente, naquela época, era sempre uma luta. Chuveiro elétrico não havia por ali. O que havia era um balde com um chuveirinho adaptado com epóxi. Colocava a água quente, fria ou temperada no balde, depois pendurava numa viga acima da altura da cabeça, ligava o chuveirinho e ia tomando banho até que a água acabasse. Joãozinho tomava banho na banheira azul. A sorte é que a família já tinha fogão a gás, se fosse utilizar o antigo fogão, a preparação do banho seria ainda mais dura para todos, pois incluiria, no serviço, ter que picar lenha para por no fogão a lenha. Após confirmar se a temperatura da água estava boa, dona Palinha, como de costume, chamava o Joãozinho que estava sempre ali por perto da barra de sua saia.


imagem da internet

A BANHEIRA AZUL...
A banheira de Joãozinho era azul por causa da tradição. Toda família em que nascia um menino, a cor de qualquer presente destinado ao recém-nascido precisava ser azul. Se fosse menina teria que ser, obrigatoriamente, rosa. É assim que as coisas eram antigamente. Se dessem presente azul e o bebê nascia menina, ia ficar guardado até nascer uma menina na família. Da mesma forma, se dessem presente rosa e o bebê nascia menino, perdia-se. Ninguém ousaria usar rosa nos meninos, nem azul nas meninas. É que não dava para saber o sexo dos bebês. As cores recomendadas eram sempre as neutras, amarela ou branca. Joãozinho se lembra, com detalhes, daquela banheira plástica azul até o dia de hoje. Ele também se lembra que a mãe precisou sair, às pressas, mas como estava bem no meio do banho, ela pediu para o seu Júlio, o pai dele, terminar de dar banho nele. A mãe colocou a bucha e o sabonete em suas mãos e disse para ele fazer bastante espuma, e saiu sem ser vista por ele... 

SEU JÚLIO...
Seu Júlio era um caipirão vindo do interior de São Paulo, descendente de índio com português. Tinha cara de homem sofrido da roça. Era bruto, xucro, machista e como todo caipira, usava um bigode preto, grosso. Isso fazia com que o seu semblante ficasse ainda mais sisudo, bravio. Havia algo mal resolvido na vida do seu Júlio em relação àquela criança. Na época, Joãozinho não entendia bem o que era. Tinha muito medo de apanhar do pai, pois até se respirasse corria o risco. Por muitas vezes foi ameaçado com a voz cochichada em seus ouvidos: 
- Se você chorar será pior! - Essas palavras eram ditas com hálito de cigarro. O som dessas palavras saia de entre os dentes tão serrados que parecia que ia quebrá-los de tanto que o pai apertava-os. Joãozinho sabia do que o pai era capaz de fazer caso contasse para a mãe sobre as ameaças. Por várias vezes seu Júlio tapou-lhe a boca para encobrir-lhe o choro. Batia sem ter dó. Ele agia assim porque tinha ódio de Joãozinho. Chamava-o de “beiço-de-nêgo” ou “mocorôngo”. Joãozinho chorava em secreto na hora de dormir, quando as luzes eram apagadas. Joãozinho escondeu esse segredo da mãe, pois tinha medo que o seu pai a espancasse também. 

DONA PALINHA...
Dona Palinha sofreu muitas barbaridades em seu casamento e sabia que o seu filho era maltratado pelo marido. Por muitas vezes pensou em ir embora com o filho. Mas não tinha coragem. O marido acusava-a de adúltera, às vezes com o olhar, às vezes, verbalizava, chamando-a de puta. 
Seu Júlio fora um bom marido no início do casamento. Ficou ciumento só depois que ficou doente. Eles já tinham dois filhos quando a esposa engravidou de Joãozinho: Pascoal e Dolores. Meses antes de dona Palinha engravidar do terceiro filho, seu Júlio foi acometido de Hepatite C e ficou convalescendo da doença até depois do nascimento de Joãozinho. A doença lhe causou disfunção erétil por um período prolongado. A família morava com várias pessoas no mesmo quintal que, na verdade, era uma vila de casas de parede e meia. Inclusive um rapaz chamado Baiano morava ali também. Baiano era um homem vindo do interior. Seu Júlio passou a ter ciúme de dona Palinha e colocou na cabeça que, em sua ausência, os dois se encontravam. Ao saber a notícia da gravidez da esposa, seu Júlio ficou com a pulga atrás da orelha. Ele fez as contas do período fértil da esposa por vários meses e chegou à conclusão de que o filho não poderia ser seu. Suas contas nunca bateram. A situação piorou ainda mais quando a criança nasceu. Seu Júlio foi visitá-lo no Hospital e olhou para aquele menino clarinho de olhos azuis e lábios carnudos (beiçudo). Em sua cabeça a criança era igual ao Baiano. Isso foi o “fim da picanha” para ele. A partir daí, começou a dizer para a esposa: 
- Como pode? Meus dois primeiros filhos são morenos, iguais a mim. E agora nasce um rato branco? E afirmava categoricamente: 
- Tem dente de coelho nessa história! Esse filho não pode ser meu! 

VOLTANDO AO BANHO...
Tinha sobrado para o seu Júlio finalizar o banho que havia sido iniciado por dona Palinha. A esposa precisou sair às pressas... Joãozinho, que tinha apenas quatro anos de idade na época, agarrava-se com unhas e dentes à mãe sempre que pressentia que ela ia ausentar-se. Manter a mãe por perto era a única forma dele sentir-se protegido. O colo da mãe era a sua bolha de proteção de todos os perigos. Joãozinho se recorda que o pai nunca pegou-o no colo, nunca cantou e nem dançou para ele dormir. Joãozinho cresceu sem o afeto de seu pai. Na verdade, ele ficava apavorado quando o seu pai estava em casa. O dia de folga do pai era o seu dia de terror semanal. Durante a semana, Joãozinho sempre ia dormir cedo, antes do pai chegar, à noite. Ele perguntava para a mãe se o pai estava chegando e se ela dissesse que sim, ele ia para a cama e se cobria. As vezes até fingia que estava dormindo e ficava ouvindo o pai conversando com a mãe na cozinha, mas logo pegava no sono. Quando acordava, no dia seguinte, o pai já havia saído para trabalhar. 

PINICO AZUL...
Sempre que a mãe ia sair de casa, precisava driblar a vigília acirrada de Joãozinho. Ela colocou a bucha e o sabão em suas mãos e pediu para ele esfregá-los até produzir bastante espuma... E, sem ele perceber, ela saiu, ausentando-se por vários dias... Joãozinho chorou tanto depois que descobriu que a mãe o havia deixado. Chorou todos os dias, longos dias de choro. Só parava de chorar quando via o pai se aproximar. Encolhia-se em seu lugar, às vezes ficava horas sem se mover no pinico. Tinha medo de fazer barulho, avezes até adormecia no pinico. Ninguém ouvia a sua voz, quando notavam a ausência ou o silêncio de Joãozinho, lá estava ele, todo encolhido, sentado em seu pinico azul, adormecido e choroso. E era assim que Joãozinho estava na banheira azul também. Todo encolhido, pois sabia que a ausência de sua mãe resultaria em novos espancamentos. Joãozinho viveria momentos de pânico, pois estava longe da proteção da mãe.

ESPANCAMENTOS...
E, Joãozinho esfregava o sabonete na bucha, para fazer bastante espuma, a pedido da mãe. Ao aproximar-se do menino, o pai acendeu um cigarro e soltando a baforada de fumaça, disse para ele guardar a bucha e o sabonete. Joãozinho, lentamente, colocou a bucha no chão. Neste momento, recebeu um tapão no pé do ouvido. A espuma, que estava em suas mãos, caiu nos olhos que começaram a arder. Joãozinho apertou os olhos, mas estava paralisado pelo som agudo tinindo em seu ouvido por causa do tapa. Quis chorar, mas já sabia que se chorasse, poderia ser pior, então, engoliu o choro. Apesar da força do tapão, conseguiu segurar o sabonete sem deixá-lo escorregar para dentro da banheira. Lentamente removeu a espuma dos olhos, depois fez gesto de que iria colocar o sabonete em cima da bucha que estava no chão. Seu Júlio desferiu outro tapão na orelha do filho. O ouvido da criança já estava tinindo por causa do tapa anterior, agora, então, parecia que ia estourar. Seu Júlio tirou outra tragada do cigarro e, enquanto soltava a fumaça entre os dentes apertados, disse:
- Não é para por aí no chão, seu moleque mocorôngo, beiço-de-nêgo! 
Joãozinho ficou em estado de choque e, com olhares rápidos, buscava pela mãe, desejando que ela aparecesse para salvá-lo, mas foi muito grande a sua decepção quando percebeu que a mãe não estava em nenhum lugar da casa. Joãozinho sentiu-se desamparado, abandonado pela mãe. Rapidamente pegou o sabonete e a bucha que havia posto no chão e, sem saber onde colocá-los, ficou paralisado novamente. Seus olhos ardiam tanto, que não conseguia olhar nos olhos do seu pai. Também não conseguia respirar por causa da forte fumaça de cigarro. Colocou os objetos novamente no chão e recebeu outro tapão. Com bafo de cigarro, disse-lhe:
- Eu falei que não é para por aí, no chão, seu mocorôngo? - Neste momento, Joãozinho olhou para a parte da frente da banheira e notou que havia ali um pequeno aparador em anexo. Pensou que poderia ser ali o local adequado para colocar os objetos. E, lentamente, arriscou. Para a sua surpresa, acertou! Era ali mesmo que o seu pai queria que ele pusesse. Mas, Senhor, por que o seu Júlio não disse isso para ele antes? Joãozinho foi brutalmente retirado do banho e ficou aguardando de pé, ao lado da banheira azul, enquanto o seu Júlio procurava pela toalha. Joãozinho, que estava nu, agora sentia muito frio, seu queixo tremia, seus dentes batiam, mas não podia expressar nenhuma reação, pois estava com medo do pai. Finalmente, seu Júlio achou a toalha e secou o seu filho de forma hostil. Joãozinho foi largado na cama coberto apenas com a toalha molhada. Joãozinho não quis pensar em mais nada, meteu o nariz no travesseiro e ficou chorando silenciosamente até adormecer de tanto frio. Também sentiu ódio da mãe que não apareceu para salvá-lo.

CONTINUA...
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Escrito por Álvaro João dos Santos

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